Oração do Pai Nosso, boné na cabeça, pé na rua, chave indo da fechadura pro bolso. As últimas palavras; “Tchau, mãe, te amo”. Na mochila havia um caderno escrito de trás para frente, um livro contando a história do Martin Luther King, um casaco, caso o tempo resolvesse contrariar a previsão, duas garrafinhas de água e sonhos, tantos sonhos que deixavam aquela velha e surrada mochila com o peso de uma bigorna. O caminho era longo, iria andar quase um quilômetro para poder pegar o metrô e depois um ônibus que o deixaria a duas quadras do estágio, por isso saia cedo, para não correr o risco de se atrasar. “Antes da hora é hora e na hora é depois da hora” as palavras de seu falecido pai batiam na sua cabeça como um mantra que não faziam muito sentido, mas sempre eram repetidas quando perigava chegar minutos depois do combinado.
A rua já estava movimentada, ela não precisava de tantos carros, nem de tantas buzinas, muito menos de tanta poluição, mas tudo isso estava lá, um mix degenerativo de tudo que não pode fazer bem ao cotidiano. Todas as pessoas se acostumaram com o nocivo “É a normalização do absurdo” seu tio tentou explicá-lo quando contava sobre um jovem de classe alta que colocou fogo em um mendigo por pura diversão. Os semáforos, na opinião do jovem rapaz, poderiam exibir mais duas cores; o azul, pedindo para que todos relaxassem um pouco e o branco, pedindo, silenciosamente, um pouco de paz.
Era no aguardo de uma delas em que o jovem se encontrava. Parado esperando que o carros entendessem o código vermelho. Ao seu lado, um grupo de alunos que, pelo papo, não tinham estudado para a avaliação de ciências e preparavam um plano meticuloso de pesca envolvendo batidas de pé e jogadas de cabelo. “A pior mentira é a que se conta sem voz.” A sua sábia vó olhava em seus olhos de criança e dizia isso com um tom carinhoso e imponente.
Sinal vermelho. Entretido com a lembrança da vozinha, nem percebeu que havia ficado para trás. Colocou o primeiro pé na faixa, olhou o sinal, a cor rubra ainda estava lá. Mas eram tempos em que a pressa sequer escuta o conselho da perfeição e o destino do nosso jovem estava para ser interrompido. Um motorista irresponsável atravessou o sinal e bateu com enorme força no rapaz. Ele voou vários metros sem nem perceber o que tinha acontecido. Boné para um lado, mochila para o outro. O motorista, honrando sua total falta de humanidade, continuou seu caminho, sem sequer saber se o jovem estava vivo ou morto.
Deitado no chão, ele tentava mexer as partes do corpo, não conseguia. O clima ainda não tinha pregado nenhuma peça e o sol escaldante piorava tudo. Tentou gritar para dizer que ficara imóvel, mas também não conseguiu. Não tinha movimentos e nem fala, só lhe restava mexer os olhos em todas as direções e observar que aquela cena não comovia ninguém. Todos continuaram nas suas marchas, nos seus fones, nas suas preocupações rotineiras. Se viu tão invisível quanto um entregador de folhetos; “minha vida está corrida demais para me preocupar com um atropelado agonizante no chão” deduziu ser o pensamento do homem que passou ao seu lado.
“Talvez se o asfalto fosse branco fizesse um contraste” pensou no desespero de não ver nenhuma mão estendida. Velhos, moços, moças, velhas, bem vestidos, maltrapilhos, ninguém o enxergou ali. Tentava gritar, mas cada tentativa fazia o caos dentro de si explodir. No desespero total, pediu a morte, fechou os olhos e repetiu a oração que havia começado o seu dia, mas dessa vez não era para se proteger, queria ser levado pelo Deus que tantos falam. De repente, ouviu um ruído ao seu lado. Era o barulho de uma moeda lançada dentro de algo. Seu boné não havia caído muito distante, mas não estava ali para aquilo. “Deus nos proteja” disse a senhora olhando em outra direção. Não conseguiu perceber muito bem o que acontecia, mas vários sons de moedinhas invadiram seu ouvido e os passos de pessoas desesperadas também. Esticou o olhar pra cima e viu a cena; era uma senhora de saia longa, falando palavras sobre “salvação” “inferno” “glória” e utilizando o boné do moribundo como “receptáculo de dízimo”. As pessoas, necessitadas por um lugar no céu, enchiam aquele local de dinheiro e saiam dali com um sorriso aberto e satisfeitas por terem contribuído com a obra de caridade de Cristo.
A chuva finalmente apareceu. Ele pensou em como o casaco o protegeria do frio que estava por vir, mas nada podia fazer. Pensou nas palavras que dissera para mãe, no conselho do pai, nos dizeres do tio e da avó e rezou novamente, mas dessa vez não sabia para quem rezar. A noite caiu e ele ainda estava ali. Agora o céu parecia um amigo, um companheiro, alguém que poderia ouvi-lo, mas não podia falar e se pudesse, falaria qualquer coisa, só para não ficar em silêncio, pois o silêncio usa palavras cruéis e aquele rapaz, infelizmente, aprendeu isso da pior maneira possível.