
… – Essas casas são todas iguais. – Dava tapas de mão aberta em cada parte da simetria do amarelo cinzento que já não podia ser tolerado…
A cidade de Tasparcha ficava longe de tudo que era perto, às vezes os mapas se perguntavam onde poderia encontrá-la. Alguns diriam que foi construída em cima de um cemitério indígena ou que foi habitada por bruxas queimadas injustamente ( e a justiça para tal ato?) em fogueiras que amaldiçoaram todas as gerações posteriores. A verdade é que poucas pessoas iam morar lá, só um triste engano faria alguém parar naquele lugar. Batista estava sentado no chão abraçando as próprias pernas e torcendo que o asfalto não queimasse a trouxa de roupa que servia como sua poltrona. A velocidade dos carros trazia um vento que começava refrescante e terminava como um vapor de esquentar o esqueleto. A mão fechada só com o polegar em diagonal estava sendo ignorada a mais ou menos umas seis horas. A probabilidade de Batista conseguir sua esperada carona era nula, por isso o improvável, por vezes, toma as rédeas e nos brinda com o que chamamos de “foi Deus que te mandou aqui”. Um carro forte com a silhueta de uma pessoa pulando estampada na lateral se aproximava. O corpanzil metálico não o deixava atingir a velocidade que queria e, contra qualquer instrução lógica, o motorista foi desacelerando até parar ao lado de Batista. O rapaz não sabia se podia ficar feliz, afinal, ali dentro havia um homem da lei, e alguns homens da lei fazem suas próprias leis.
– Perdido, rapaz? – Um policial completamente encapuzado virou a cabeça em sua direção. Ele imaginou que ali haviam olhos de interrogação.
– Preciso ir para a próxima cidade, eu fui roubado, me levaram tudo.
– E você precisa ir lá pra quê? – Batista achou que aquela resposta era óbvia, porém o que realmente o incomodava era o fato dele estar dirigindo só. Todos os carros fortes eram conduzidos em duplas, ao estilo buddy cop.
– Entrar em contato com alguém conhecido, se você me emprestasse o celular seria uma boa ajuda.
– Até poderia, mas ele descarregou. – O policial tirou ele de cima do painel. – Está vendo? completamente desligado.
– Então poderia me dar uma carona? – Em sua cabeça a dúvida de entrar naquele carro era maior do que a certeza de que morreria naquele lugar sem conseguir qualquer ajuda.
– Posso sim, mas só irei parar em Tasparcha e ela não é tão perto, serve? – Batista balançou a cabeça positivamente, pegou sua poltrona, que, por ora, voltou a ser as suas poucas roupas e entrou no carro forte.
A viagem foi grande e pouco silenciosa. O problema era ouvir o policial por trás daquela balaclava, Batista começou a esticar o ouvido, estava cansado de pedi-lo para repetir cada palavra. E não era um cansaço comum, seu corpo destruído do sol começou a dar sinais de mau funcionamento e ele, mesmo tentando não soar mal educado, cochilou enquanto o policial contava coisas banais como uma balsa que tinha uma barba estranha, um site que ensinava a fazer uma bomba-relógio e uma história sobre um teste que ele elaborou para saber se as pessoas realmente o amavam.
– Acorda, rapaz, chegamos. – O policial já estava do lado de fora. – Vamos, vamos, acorda. – Batista abriu os olhos lentamente, tentou entender onde estava, até que lembrou que não dá pra identificar um local desconhecido. Se envergonhou ao ver uma enorme mancha de baba em seu ombro.
– Chegam… chegamos.
– Exatamente, pode sair. – O policial não estava mais encapuzado. Era um rapaz de pele bem branca, seus cabelos nem combinavam com a sua profissão, assim como os traços finos de seu rosto. Talvez fosse por isso que ofereceu a carona, parecia demonstrar sensibilidade só pela gentil aparência.
– Muito obrigado…como é o seu nome mesmo?
– Bori 78 – Ele sorriu. – Muito prazer, naquela casa amarela você vai conseguir informações. – A estranheza do nome foi compensada pela profissão, vai que todo policial usa um número de identificação ou todos são fãs conscientes de Laranja Mecânica… vai saber. Mas havia algo muito mais estranho e, dessa vez, sem nenhuma explicação prévia.
– Casa amarela?
– Sim, sim, aquela ali. – … um sorriso indicava o fim da informação e uma sobrancelha franzida não.
– Todas são amarelas. – Batista sorriu sem graça.
– Lógico que não, rapaz, vai lá, eu preciso fazer algo importante, não posso demorar. – Bori 78 foi descarregar o carro forte e deixou Batista ali sem saber muito bem o que fazer. Ele foi andando meio perdido, todas as janelas que estavam abertas e com pessoas apreciando o ambiente, se fecharam com violência. Parecia que estavam tentando se esconder. Havia tanta gente murmurando de dentro das suas casas que o som era quase audível. Agora pareceu uma boa ideia ter ficado absorvendo a quentura daquele asfalto, principalmente ao passar por uma praça e perceber que o monumento deles era um imenso caixão dourado reluzindo o forte sol que se fazia naquela manh…tard… afinal, já havia passado dia o suficiente e o sol parecia no mesmo lugar.
Batista parou na frente de uma das dezenas de casas que apresentavam a mesma estrutura, os mesmo elementos, as mesmas cores e sempre uma gaiola com o mesmo passarinho pulando de poleiro em poleiro quase como um balé irlandês. A casa, por dentro, mantinha a mesma linha pouco surpreendente. Paredes cinza com pregos segurando quadros invisíveis, uma escada de madeira rústica e um balcão onde Batista poderia conseguir alguma ajuda.
– Boa tarde, o senhor pode… Bori? Como você chegou aqui?
– Eu sempre estive aqui, meu pai me trouxe, você me conhece de onde?
– Você me deu uma carona até aqui.
– Eu? Eu não, nem sei dirigir, quer dizer, até sei, mas aqui só algumas pessoas podem dirigir.
– Mas… mas… então era um irmão gêmeo.
– Também não, não tenho nenhum irmão, na verdade, ninguém tem. – O rapaz guardou o caderno em que fazia anotações. – Em que posso ajudá-lo?
– Eu… é que… é que eu… – Batista só estava esperando o tempo para acordar daquele maluco sonho. Tudo ficava mais doido a cada segundo. – Eu posso usar o telefone ou computador?
– Nós não temos telefone, é proibido.
– Proibido? Mas o rapaz que me trouxe estava com um. – Talvez Batista tenha falado mais que o permitido. – Quer dizer, tava descarregado, então não serve pra muita coisa.
– Quem te trouxe? Essa pessoa precisa entregar esse celular agora. – O rapaz ficou furioso. Seu rosto foi do branco gesso para o vermelho fogo em segundos. – Deve ter sido o 78, desobedecendo de novo. – Ele passou por Batista ignorando-o seu pedido inicial. Sem nenhuma esperança de conseguir alguma comunicação ali, bastou seguir aquele estranho homem.
Saindo da casa, Batista viu algo que o fez congelar; parecia que todos os cidadãos de Tasparcha estavam ali. Todos exatamente iguais; cabelo liso preto, pele branca, magros e altos. Seus olhares tinham uma só direção. “Maldita carona”.
– Você não pode ficar, nós somos os únicos, ninguém pode entrar na cidade.
– É isso aí 05, estamos com vocês! – Gritos, alguns empolgados e outros raivosos, acompanharam a fala do que parecia ser o Bori 05.
– Bom dia… ou boa tarde. – Batista se concentrava pra não gaguejar. – Eu não quero ficar, quero ir embora, é só vocês me ajudarem. – Ninguém se pronunciou.
– Quem te trouxe aqui?
– Eu não lembro. – Ele não queria ser mais dedo duro ainda.
– Foi o Bori 78. – O rapaz que falara com ele dentro da casa gritou.
– Onde está o Bori 78? – Parecia que alguém havia faltado a festa. Todos olharam para o banco. Numa cidade daquele tamanho, saber a profissão de cada um não deve ser algo difícil. – Vá pegá-lo, Bori 17. – Antes que ele conseguisse cumprir a ordem uma explosão estrondosa veio da direção do banco. O que antes representava a detenção do poder, agora era fogo e fumaça. Batista aproveitou a distração e saiu correndo. Os Boris ficaram em dúvida entre pegá-lo ou salvar suas finanças. Quando o assunto é dinheiro, um estranho fugindo não parece valer algum centavo.
Batista só pensava em sair dali. Ele não queria estar, eles não queriam que ele estivesse. Nada o prendia, somente a incapacidade de achar uma saída, pois as casas eram iguais, as ruas eram iguais, as esquinas, becos, vielas, tudo era igual. Já havia dado voltas e mais voltas, o medo de ser pego desaparecera e deu espaço ao cansaço que suas pernas já não mais aguentavam.
– Essas casas são todas iguais. – Dava tapas de mão aberta em cada parte da simetria do amarelo cinzento que já não podia ser tolerado. – Todas iguais. – Ia desfalecendo a cada passo, só queria achar uma saída, somente uma saída. De repente, um beco, uma luz. Encontrou algo diferente de tudo que havia visto ali. Um espelho. Mas, para sua total agonia, ao se olhar, percebeu que seu cabelo estava preto e liso, sua pele branca, seus traços haviam afinado e seu corpo, antes malhado, agora estava magro. Começou a bater no rosto e esticar as bochechas como se pudesse arrancá-las. Inútil. De repente, uma voz se aproximou.
– Bem-vindo, Bori 78.