Cantando o conto #006 – Construção

Era um dia normal, igual aos dias normais que acompanhavam a vida do humilde Francisco. Aquela correria cotidiana, as nuvens cada vez mais baixas e a televisão mal sintonizada que conduzia suas noites não entravam em sua reza, eram problemas que nem mais se percebiam diante de tanta labuta. Mas Francisco sorria, sorria como sempre sorriu e naquela manhã de quinta-feira olhou para sua mulher ao seu lado, deitada como um anjo passeando numa nuvem nos céus e começou a beijá-la com os mesmos beijos do primeiro encontro. Fizeram amor uma, duas, três, o despertador já havia tocado algumas vezes e seus filhos bateram na porta para saber se tudo estava bem… e como estava. Infelizmente, Francisco não teve tempo para tomar café, deu um beijo na testa de cada filho dando conselhos personalizados de como deveriam se portar na escola. Apesar da pressa, preferiu não correr, queria carregar consigo a felicidade de uma manhã recheada de amor e sentir o vento forte que fazia daquele dia algo especial.

Francisco olhou o monumental German Brother Trade Center, o prédio o qual estava levantando com muito esforço e suor, eram essas as palavras que ele usava quando falava com os filhos. A construção magnânima ficava perto da praia e ele sabia que só pisaria ali quando tudo não parecesse um amontoado cinza de materiais. Quando a construção estivesse reluzente e pomposa, o último perfil que gostariam de ver lá era o dele.

– Vamos, Franciscão, hora de fazer a mágica acontecer. – Um jovem bem vestido se aproximou com um sorriso simpático. Ele foi trocar de roupa e subiu rápido para empilhar os tijolos e massas pensando em como pessoas seriam felizes ao desfrutar daquilo que seria um lar.

– Francisco – O jovem reapareceu. -, coloque os óculos de proteção. – Quase nenhum pedreiro gostava de usar os equipamentos obrigatórios, era um senso comum entre eles, não havia uma explicação lógica. Qualquer resposta nessa direção era temperada com risos e saídas pela tangente.

A hora do almoço havia chegado e todos os trabalhadores se enfileiravam em uma enorme mesa que se assemelhava muito com uma pista de corrida. A música alta vinha de uma das caixinhas JBS do pedreiro que era conhecido como Dijei, enquanto a variação de cheiros entranhavam o coroado feijão com arroz de Francisco. A comida era acompanhada de um gigantesco copo de suco, que tocava o nariz de tão cheio que estava.

De volta ao trabalho, um aviso do jovem supervisor indicava que Francisco teria que subir no andaime para fazer uma pequena correção em uma instalação externa. Nada demais, mas ficar com aquelas cordas pressas a si como um pássaro na gaiola não combinava com ele. Lá do alto, tudo parecia ínfimo, fugaz, as pessoas viravam pequeninas cabecinhas e os problemas eram varridos pela brisa. Essa sensação de leveza levou-o ao descuido. Uma rajada de vento fez o andaime balançar e as mãos firmes de Francisco, que seguravam as ferramentas, não foram rápidas o suficiente para agarrarem algo que impedisse que o pobre pedreiro caísse daquela altura mortal. Francisco tombou em frente a padaria em que comprava o pão das crianças. Foi se arrastando para pedir ajuda e acabou no meio da rua. Morreu ao som de buzinas desesperadas e gritos pouco empáticos…

– Amor, amor, acorda, você vai se atrasar. – Aquela voz doce contrastando com o terrível pesadelo fez Francisco erguer o tronco abruptamente, mal conseguia acreditar que tudo que tinha acontecido era somente um sonho ruim. – Amor? Aconteceu algo?

– Não, felizmente, não. – Ele precisava se sentir vivo. E naquela manhã de sexta fez amor com sua mulher como se nunca tivesse feito com nenhuma outra mulher. Repetiu a dose por vê-la sorrindo de satisfação. Se prometeu não ter mais pesadelos como aquele, mesmo sabendo que os sonhos são incontroláveis. Beijou seus filhos ao som de um pedido exagerado para o dinheiro pro lanche, ele não tinha. Correu para o trabalho, tropeçando nas próprias pernas e no temor de chegar atrasado.

– As paredes daquele prédio não irão se construir sozinhas. – falou o rapaz que apressava todos os trabalhadores da obra. Francisco tinha mãos bem habilidosas e seu trabalho era feito com a maestria de uma fada madrinha construindo uma carruagem de abóbora. Ainda deu tempo de esperar os seus amigos concluírem o trabalho. Ele sentou-se fitando a quantidade de carros que passavam pelas ruas, alguns pareciam não ter direção e outros pareciam perdidos, o trânsito é um mundo louco à parte de um mundo doido.

Francisco chegou primeiro no local onde todos almoçavam. Conseguiu uma das poucas mesas que ali estava, não precisando fazer o malabarismo entre as mãos, a coxa e as garfadas de feijão com arroz. Bebeu seu suco rápido, pois o horário de almoço era breve e o trabalho era muito. Levantou-se enquanto seu amigo contava piadas sobre como havia sido pego pelo patrão enquanto tirava umas horas extras de sono.

– Francisco, sobe lá pra corrigir o seu trabalho de ontem. – Falou o rapaz enquanto olhava algo no celular. O andaime já estava pronto e, mesmo sabendo que não podia, Francisco colocou os fones de ouvido e projetou passar o resto do dia enrolando lá em cima, ele curtia ficar no alto, fazia daquilo a sua liberdade, mas somente até a hora da buzina o chamar. O som alto em seus ouvidos não o deixou ouvir os gritos desesperados das pessoas que viam a cordas silenciosamente romper. O andaime pendeu de um lado e Francisco, desequilibrado, caiu no meio de todos que tentaram salvar sua vida. Morreu em cima de poça de água, ao som de choro, espanto e lamentações…

– NÃO!!!! – Francisco abriu os olhos com ferocidade e se sentiu aliviado de tudo não ter passado de um pesadelo. Sentou-se na beira da cama com a mão no rosto. Prendeu o bocejo tentando se convencer de que não estava mais com sono.

– Relaxa, amor, não quer ficar mais um pouquinho na cama? – Sua mulher começou a beijar seu pescoço. – Hoje é sábado.

– Sábado também é dia de trabalho, não quero me atrasar. – Ele disse enquanto percebia outro bocejo a caminho.

– Nem um pouco? – A mulher puxou ele para deitar-se novamente. O sexo não foi bom, ela parecia estar transando… ele não. Ao fim, se levantou, tomou um banho rápido e saiu sem se despedir dos filhos. Chegou ao trabalho e foi burocrático; não era o melhor pedreiro da cidade e, por conta disso, empilhou uma parede de tijolos que era tão firme quanto um castelo de cartas. Não almoçou, tirou o horário para ficar sentado tomando a brisa no rosto e bebendo sua cerveja escondida num squeeze. De repente, resolveu adiantar a o trabalho e subiu no andaime para ver se negociava sair mais cedo. Era o dia de descanso de Deus, ninguém merecia estar sendo vigiado pelo sol justamente na labuta cotidiana. Não sabia se era a cervejinha ou alguma tonteira oriunda do stress, mas algo não o estava permitindo um total equilíbrio e o pobre tombou, tombou entre os transeuntes com seus biquínis, calções de banho e sorrisos de quem espera o final de semana para viver. Morreu balbuciando uma prece que pedia um favor curioso ao todo poderoso: “deixo à minha mulher o amor de meus filhos, deixo aos meus filhos o amor da minha mulher e as contas, que Deus pague.”

1 comentário Adicione o seu

  1. orlando3neto disse:

    Muito bom cara, parabéns!

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