CANTANDO O CONTO #016 – NÃO USE MÁSCARA

– Vocês têm máscara? – Um jovem carregando duas caixas de leite sem lactose se aproximou do caixa. Era um dia com pouquíssimo movimento, o que os funcionários adoravam e a patroa odiava, já o inverso, produzia exatamente o inverso. Após ouvir alguns gritos inaudíveis, me sentei no caixa para poder ter algum segundo de paz, mas meu corpo ainda não estava calmo. Respondi a pergunta com um aceno de cabeça e me estiquei para pegar o pacote de máscaras que ficava no canto superior, ao lado de uma caixa de sucos em pó e barras de cereais. Minha altura nunca foi um grande marco, nem a minha grande disposição. Me estiquei o quanto pude, mas acabei derrubando a caixa de máscaras no chão. Irritada, me abaixei para pegar as máscaras, torcendo para que a Dona Priscila não tivesse ouvido nada.

– Essas máscaras estão contaminadas, vocês têm outras? – Ainda estava abaixada quando ouvi o cliente falar. Elas estavam revestidas em plástico, em bastante plástico, posso confirmar isso, pois eu mesmo fiz esse trabalho.

– O plástico é resistente, senhor, as máscaras não sofreram nenhum tipo de contaminação.

– É melhor não arriscar. – Ele sorriu sem mostrar os dentes e colocou o leite em cima da esteira. – Vocês têm outras?

Respirei fundo, eu já estava cheia disso tudo, já estava cheia de tentar não me importar, mas às vezes é bem difícil.

– Temos, senhor, eu mesmo, tenho máscaras por todo o meu corpo, todo o meu corpo, tenho tantas máscaras que já perdi a conta, sabe o bloco Os Mascarados? eu deveria ser a garota propaganda deles. – Me ajeitei no pequeno banco que nós tínhamos para sentar e pus a caixa no colo para ajeitar as máscaras que haviam caído. – Quer que eu te conte sobre a minha vida? – O rapaz me olhou assustado, guardou a carteira no bolso e se aproximou. Entendi aquilo como um sim.

…Estava sentado na sala quando vi um comediante contar uma piada que dizia que ser gay não tinha como ser uma opção, afinal, se fosse, jamais um negro escolheria ser gay. Era um programa de rádio, as duas pessoas, tidas como comediantes, riram, meu pai, homem viúvo, aposentado da marinha e sócio de uma loja de roupas de engomadinhos, também riu. Levantei do sofá e fui pro quarto, aquela foi a primeira vez que eu coloquei uma máscara. Não, não, minto, foi na infância, quando estávamos fazendo um trabalho escolar com papel crepon, eu estava num grupo onde só tinham meninas e resolvemos pintar o cabelo de vermelho. Foi muito divertido, mas a coordenação não gostou do resultado. O professor odiou o trabalho, mesmo com a equipe respeitando o passo a passo e disse que aquilo tudo era pra chamar atenção. Essa sim foi minha primeira máscara. De lá pra cá já foram tantas, mascarei meu rosto, meu corpo, minha personalidade. Mascarei meu jeito de andar, quando passei em frente a um bar e vi que as pessoas ali não conseguiam guardar seus comentários na boca. Mascarei minhas opiniões quando fui silenciado pelo vizinho que saiu de casa só para dizer que eu estava errado, mesmo eu falando no celular com uma pessoa que não tinha nenhuma relação com ele. Mascarei quase todas as minhas opções. Não é ironia eu estar vendendo máscaras, é o destino, afinal, a última máscara eu pus – que eu me lembre – foi para poder trabalhar aqui. Lembro do dia da entrevista, lembro de ver meu pai entrar no quarto e jogar na minha cama uma camisa polo cinza e uma calça social. Talvez aquele fosse o gesto de “carinho” que ninguém merece ganhar. Eu já tinha cortado o cabelo para parecer uma pessoa normal, até as roupas precisariam ser mascaradas? Assim o fiz. Cheguei na entrevista e conheci a dona Priscila, ela não quis ser simpática, pelo contrário, falou alguns absurdos, parecia tão cheia de si, mesmo com doses cavalares de retrocesso saindo de sua boca. “Por que ela não está usando uma máscara?” Pensei, meu olhar ditou cada letra daquela indagação, ela nem percebeu. A questão é que eu tinha feito a pergunta errada para meu consciente. Ela não precisava de uma máscara, eu também não, você não precisa de uma, ninguém precisa de uma máscara, ninguém deveria…

– Boa tarde. – Uma jovem com roupa de academia e uma blusa de loja de conveniência com as letras O. D. D. se aproximou. – Quanto está a máscara?

– A preta custa cinco reais e as estampadas custam sete.

– É… vou aproveitar pra pegar uma também. – O rapaz voltou a pegar a carteira e me deu o dinheiro do leite e da máscara. – Obrigado. – Não tinha troco, ele sorriu e foi embora. Não comentou nada da minha história, talvez eu tivesse importunando ele e nem havia percebido.

– Eu vou querer a estampada floral. – A menina puxou o dinheiro que estava preso entre o corpo e a apertada calça legging preta. Entreguei a máscara e lhe dei um real de troco.

– Muito obrigado, quer mais alguma coisa?

– Não… na verdade, eu adorei seu cabelo, desculpa perguntar, mas você passa o que nele?

– Eu uso uma máscara capilar, mas não devo aconselhar ela, dá muito trabalho pra tirar.

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