CANTANDO O CONTO #018 – Há Carne

em
Texto, Locução e Edição de Anderson Shon

Hoje, eu sorri, sorri e olhei para meu filho, ele também estava sorrindo, pois aquele ritual dominical que precede a chegada da segunda, veio com uma notícia perdida entre o turbilhão de más notícias reais e más notícias disfarçadas. Nossa família não era grande, um omelete com dois ovos e raspas de cenoura ralada era o suficiente para uma refeição noturna, que às vezes vinha acompanhado de um suco em pó ou de reclamações. Mas dessa vez, não, dessa vez o silêncio para que alguém pudesse aumentar a televisão sem que aquilo parecesse uma atitude mal educada era o que poderíamos fazer diante daquela notícia.

Não era meio dia, na verdade, já estava mais próximo da meia noite, o galo de Exú estava começando a fazer o gargarejo e aquecendo a voz. Talvez por isso o alívio de uma TV que nos pudesse dizer sobre algo bom. Ninguém estava estendido no chão com sangue por todo lado e  a tv ofuscando somente um corpo coberto por uma saco preto ou um corpo preto coberto por um saco. Não são também as matérias de sexta que insistem em falar sobre prisões e como a superlotação é desumana, mas no dia seguinte entendemos que o habeas corpus não escolhe corpos que julga inábeis.

A comédia do subemprego escolhe cabelos, cores, trejeitos que alguém olha e consegue pensar “acho que isso dá uma boa piada”. Queria, uma vez só, me colocar no lugar desse pensamento, por que quando chego no trabalho, um dos meus medos é vir alguém da impressa querendo fingir que meu problema não é só a pauta do dia e, no outro dia, criar uma matéria sobre a forma mais fácil de dobrar uma camisa social ou como sofás com garrafa pet podem ser funcionais. Os jornais da banca não são diferentes, insistem numa linguagem tão distante que imagino que não sejam feitos pra gente.

– Mamãe, isso é verdade? – Meu filho me olhava apontando pra TV. Apesar da certeza de que ele havia escutado e entendido tudo, percebi que ele queria um beliscão de realidade, só para não gastar alegria em um mero sonho. A questão é que eu tinha desaprendido a arte de ser otimista, ser otimista por aqui não é fácil, tá ligado? O último otimista tentou mudar tudo com a sutileza das palavras, depois com a bravura do braço erguido e, por final, pegou em armas. Nunca mais foi visto… e nada mudou, a não ser a sua ausência e a evidência de que tentar mudar o sistema é como chegar num açougue e com um cartaz pró veganismo.

Eu precisava dizer algo pro meu menino, algo que ao mesmo tempo não tirasse sua esperança e que não criasse uma ilusão. Ser mãe negra é rezar até quando o filho só vai ali comprar o pão e ao vê-lo voltar, exercer a mesma gratidão de quem foi à guerra e voltou sem nenhum arranhão. Aquela notícia mudava tudo teoricamente, mas era um passo e as sandálias, sapatos, saltos, só são movimentados com passos.

– Sim, filho, é verdade. – Sorrimos juntos e aumentamos ainda mais a TV…

-Boa noite telespectadoras e telespectadores, está proibida a venda de carne.

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