
Mercado negro, gato preto, céu negro, coisa preta, denegrir… já pararam pra perceber quanta negatividade está associada com a palavra preto ou negro? Tudo bem, podemos recorrer ao latim e argumentar que negro vem de necro, termo que indica morte ou algo morto, mas alguns estudos afirmam que nigrum – palavra mãe que originou o termo negro – não tinha nenhuma relação com o termo necro – do grego nekrós. Deixando a etimologia de lado, o ideal mesmo é não se apegar a essas origens e perceber que vivemos um mundo em que não deveria ter espaço para esse tipo de associação. A palavra tem uma força inimaginável, já que ela não tem o poder de, uma vez lançada, ser pega de volta. O termo humor negro vai nessa mesma direção, é sempre usado quando se quer falar da comédia que não leva em conta o bom senso e utiliza temas delicados e preconceituosos para gerar riso. A questão é que o humor negro popular tem, em sua maioria, autoria branca, tornando o termo mais inadequado ainda. Vamos conhecer o que realmente deveria ser o humor negro.
Tomemos como exemplo as séries Um Maluco no Pedaço, da década de 90, e Todo Mundo Odeia o Chris, de 2000. Vou citar o sexto episódio da primeira temporada, em que Will e Carlton são presos por suspeita de roubo de carro. Fica reforçado o presente preconceito quando eles são colocados em uma cela onde há um homem branco e Will fala a seguinte frase: “se você vir um cara branco na cadeia é por que ele aprontou pra valer”. Logicamente, o humor não existe por conta de jovens negros serem presos indevidamente, mas sim por toda a construção da cena: um homem branco cantor de ópera dançando e cantando como uma estrela pop, as caras e bocas dos dois primos diante daquela situação, a forma inusitada na qual Will usa para conseguir entrar em contato com o tio… Imaginemos se eles fossem dois jovens brancos, a cena sequer conseguiria ser feita, pois eles não seriam suspeitos para a polícia. Além de ser uma inteligente cena de humor negro, ela traz em si uma crítica e uma denúncia que foi o pontapé para vários jovens entenderem como funciona a lógica do racismo. (mesmo ele sendo ilógico).
Obs.: A música Lets My People Go cantada por Will e Carlton, como passatempo na cadeia, é uma antiga canção que os escravizados cantavam em momentos de distração.
Já em Todo Mundo Odeia o Chris, no terceiro episódio da terceira temporada (Todo mundo odeia dirigir), Chris vai para a escola com o carro do pai, mas não pode deixar que essa informação vaze, pois tem medo que algum professor descubra e fale para sua família. Greg, seu melhor amigo, não consegue guardar o segredo e a informação passeia em toda a escola a partir da frase: “Oi, Chris, soube que você veio com a máquina/banheira do seu pai”. Até que a frase encontra a professora Morello: “Oi, Chris, soube que você tem um pai.” O humor em questão é construído a partir da figura dos brancos que não se veem como racistas, apesar de reproduzirem isso o tempo inteiro. Assim como em Um Maluco no Pedaço, temos aí uma crítica ao abandono paterno, tema que também foi abordado por outra série de comédia que usa o Brooklyn como plano de fundo, a Brooklyn 99. O centro de pesquisa Pew relatou que 1 em cada 3 pais negros norte americanos não tem contato com seus filhos. O humor nessa cena do Chris seria impossível se ele fosse um menino branco, pois sua professora não teria deduzido – baseado no racismo – que ele não tinha pai, logo isso não a faria demonstrar qualquer surpresa. Vale a ressalva que a mesma pesquisa aponta um número maior de pais brancos que abandonam os filhos (49%) do que de pais negros (33%).
O humor negro não precisa ser sempre crítico, ele pode ser só humorado mesmo. Eu, A Patroa e as Crianças não aborda tantas questões raciais, e quando o faz, é muito numa ótica de meritocracia. Michael Kyle tem um discurso muito forte de que chegou onde está pelos próprios méritos. A comédia física dos personagens traz muito da dança negra, dos trejeitos, da maneira de falar, sem precisar transformar isso em algo pejorativo. O humor é feito de estereótipos, mas isso não precisa ser ofensivo, como no caso do Danilo Gentili e sua infeliz comparação de King Kong com um jogador de futebol – “King Kong, um macaco que, depois que vai para a cidade e fica famoso, pega uma loira. Quem ele acha que é? Jogador de futebol?” – ou Junior Cociello afirmando que o jogador Mbappé é tão veloz que faria “arrastões na praia” – “Mbappé conseguiria fazer uns arrastões top na praia”.
O termo humor negro precisa ser ressignificado. O que se entende por humor negro sequer deveria ser entendido como humor, já que a ofensa não deve ser combustível para a graça. E essa ressignificação é mais simples do que possamos imaginar. Mercado negro pode ser mercado clandestino, o gato preto não dá azar, o céu negro é um céu com nuvens carregadas, a coisa preta? Não, diga somente que a coisa está ruim, deneg… difamar… estão vendo? São substituições simples que podem diminuir o estrago que o racismo estrutural faz. O que é um pontinho preto em cima de um palco? É um negro ou uma negra pronta pra te ensinar o que é humor. #WakandaForever