
Se há uma certeza entre 99,9% dos brasileiros é a presença da Turma da Mônica em algum momento da vida. Seja na festa de aniversário do amiguinho, seja na pintura da parede externa do mercadinho do bairro, seja em uma tirinha no livro didático, na decoração da sala de aula, nas revistinhas dando o pontapé na leitura, sei lá, a Turma da Mônica alguma hora saltou aos olhos e se fez presente. Maurício de Sousa é uma das personalidades mais conhecidas e respeitadas no país, quase uma unanimidade… quase. Criada no fim da década de 50, a turminha do bairro do limoeiro trouxe consigo algumas representações racistas que eram comuns a época e seu criador não teve a delicadeza de perceber que estava com uma arma de socialização muito potente em mãos. Através de seus personagens, algumas visões poderiam ser mudadas, mas elas acabaram reforçadas.
Um artigo escrito pela Fúlvia Rosemberg e pelo Paulo Vinícius Baptista da Silva – Brasil: lugares de negros e brancos na mídia – traz as diversas associações pejorativas que negros são alvos ao longo da vida. “Em relação a metáforas pejorativas, as investigações sobre racismo revelam que é frequente a associação de pretos e pardos a construções negativas, tais como mau cheiro, sujeira, pecado, castigo, tragédia, feiura, animais (personagens antropomorfizados), baderna, maldade, periculosidade e ameaça social.” Vou me apegar a característica sujeira, pois ela foi dada ao primeiro personagem negro da Turma da Mônica: o Cascão.
“Mas o Cascão não é negro, ele é da mesma cor dos outros personagens!” Aí é outro debate muito interessante, o colorismo. A história mostra que quanto mais pigmentada a cor de pele, mas preconceito a pessoa sofre, o que, inversamente, cria uma falsa ideia de que os negros com menos pigmentação de pele não são negros. Apesar do colorismo ser comum em nossa sociedade, ele não é maior que o racismo, e o Cascão, mesmo com a pele clara, apresenta uma característica muito própria dos negros: o cabelo crespo. Em comparação com outros cabelos da Turma da Mônica, é perceptível que somente Cascão tem no cabelo as características visuais mais comuns de alguém que tem o cabelo crespo. Há problema em ter cabelo crespo? Nenhum, o problema é você associar ao único personagem de cabelo crespo um termo pejorativo recorrente na sociedade, uma ideia preconceituosa que foi disseminada pela força destrutiva do racismo. A ideia de que negros e negras são pessoas sujas.

Tudo fica ainda pior nas revistas Cascão n°28 e 68, quando o cabelo de Cascão é lavado e descobrimos que o cabelo é liso, seu aspecto crespo era por conta do acúmulo de sujeira. Numa das imagens, ele se vê com cabelo liso quando olha um espelho limpo, tornando a característica, com objetivo de ser jocosa, extremamente ofensiva.
O personagem Jeremias, primeiro de pele negra, foi criado em 60, mas nunca teve grande protagonismo e presença na série. Somente em 2017, quarenta e sete anos depois da criação da revistinha, Maurício de Sousa percebeu a necessidade de criar uma família interia negra dentro da Turma da Mônica. Milena e sua família foram capa da edição 45 da Turma da Mônica de 2017. (Percebam a semelhança do cabelo do pai de Milena com o cabelo de Cascão.) Essa tentativa de recuperar o tempo perdido é muito válida, afinal, foram quarenta e sete anos ignorando uma pluralidade afro que poderia ser introduzida na vida de tantos brasileiros que foram educados a partir das histórias de Maurício de Sousa.
Jeremias – Pele é outra obra que envolve a Turma da Mônica em questões raciais. O quadrinho faz parte do projeto Graphic MSP, onde os personagens ganham releituras de outros autores e autoras, com histórias próprias e mais maduras. Com autoria de Rafael Calça e desenhos de Jefferson Costa, o quadrinho apresenta uma criança negra, Jeremias, sendo alvo de racismo pela professora da escola, enquanto seu pai, angustiado pela situação, sofre o mesmo no trabalho. O quadrinho ganhou o prêmio Jabuti e é nome certo em mesas onde há a temática literária com recorte racial.
A Turma da Mônica podia ter esse viés desde o início e em nada mudaria a qualidade das suas história, pelo contrário. O próprio Maurício de Sousa reconhece essa falha. “Eu demorei para criar um personagem como a Milena porque eu não conhecia a realidade dos negros, principalmente a das crianças negras. Eu tive colegas negros na infância e na fase adulta também, mas o Jeremias, que foi meu primeiro personagem negro, nunca foi protagonista. Depois de muitos anos fui reparar nisso”. Esse trecho da entrevista dada ao site Leia já evidencia como o autor da Turma da Mônica entende que era seu dever ter apresentado personagens com uma maior pluralidade.
Apesar da demora, agora podemos ver perfis muito mais democráticos presentes no bairro do limoeiro. Reconhecer o erro é importante, mas corrigi-lo é melhor ainda. Fico aqui na esperança das novas crianças que crescerão lendo a Turma da Mônica e treinando o olhar para reconhecer na sociedade a diversidade, agora, presente nos quadrinhos. #WakandaForever
Por que não é mimimi?
Fica mais fácil explicar que não é mimimi quando o próprio autor já disse. Serei breve. Não é estranho que um quadrinho com a importância da Turma da Mônica não tenha se importado em representar negros? Também não é estranho que tenham demorado tanto para problematizar a figura do Cascão? Quando a Turma foi adaptada pro cinema, aí o debate sobre a etnia do Cascão chegou na mídia, Maurício de Sousa se posicionou dizendo que Cascão nunca havia sido desenhado como um negro, diferente do Jeremias, por exemplo. Pra mim, fica claro como o racismo nasceu de forma espontânea e como ele nasce em um comentário infeliz, em um olhar discriminatório, em uma ofensa mal fantasiada de opinião. Reconhecer o nosso racismo, oriundo de uma estrutura racista social, é a primeira fase para expulsarmos ele. Então… não é mimimi.