Conto ou Crônica? 001 – O Vendedor de Jornais

Lembro do dia 23 de Novembro de 2013, estava na livraria Leitura fazendo algo que ia mudar completamente a minha vida; lançando o meu primeiro livro. A verdade é que eu nem sabia muito bem o que estava fazendo, o que era lançar um livro e diferente de muitos, não me sentia um escritor até aquele momento. Oito anos depois, a jornalista Katia Borges fez um apanhado dos dez escritores e escritoras expoentes da nova geração baiana de literatura, e quem estava lá? Sim, Anderson Shon, eu mesmo, passado oito anos e finalmente virei um expoente, agora sou um novíssimo baiano, como diz a manchete da matéria. E não há ironia na minha fala, a arte é feita com passos lentos e os meus são como um ruflar de um canário.

Fui avisado de que a matéria havia saído pela minha mãe. Ela, por sua vez, foi avisada por uma amiga que não imaginava abrir o jornal naquela manhã de sábado e ver um rosto conhecido. Você aí que lê essa crônica, quantas pessoas conhecidas você já viu no jornal? Melhor, quantas pessoas você já viu sem saber que elas estariam ali? Surpresa para a amiga da minha mãe, para a minha mãe e para mim, que corri feito um louco para a banca de jornal mais próxima, com a roupa que estava no corpo; um short daqueles que só servem pra dormir e uma camisa de manga longa com a estampa do Nirvana.

Subi a ladeira e fui até o mercadinho, sabia que lá vendia jornal. Achei quatro exemplares do O Correio, não eram suficientes. Mãe, pai, avó, padrinho, amorzinho, duas tias de consideração, três amigos mais próximos, um pra guardar de recordação, quatro jornais não eram nem a metade do orgulho que queria dar para as pessoas que estão sempre na torcida e na vibração para que a literatura aconteça. Paguei os jornais, coloquei-os embaixo do braço e fui andando até o largo, seria mais fácil achar um banca por lá.

Passei pelo comércio pujante do bairro da Caixa D’água imaginando que deveria ter levado um dinheiro para pelo menos comprar um bolinho de comemoração. Meus pais me ensinaram a comemorar as vitórias, elas são tão poucas ao longo da vida, não faz sentido deixá-las escapar. Nesse meu devaneio, muito inspirado pelo cheiro delicioso da Casa do Bolo, fui interpelado por um senhor. Ele olhou atentamente pra mim e parou na minha direção.

– Menino, quanto é o jornal?

– R$1,75 – Respondi diminuindo um pouco o passo, mas sem parar de vez. É muito comum em Salvador as pessoas pedirem informações por estarem perdidas. Na verdade, quem é que não está?

– Me dê um. – Ele puxou do bolso uma nota de dois reais e minha ficha caiu. Aquele homem jamais olharia pra mim e imaginaria que eu estava dentro do jornal. E, se caso imaginasse, com certeza apostaria que veria o meu perfil numa das páginas policiais. Eu não podia ser matéria, não podia ser pauta, no máximo um vendedor de jornais e olhe lá. Nada contra a profissão, mas eu não estava com um colete que normalmente informa o preço, não estava com uma pilha de jornais sobre o ombro e nem pilotava uma bicicleta cinza com buzina de sino. Ainda assim, o máximo que poderia ser para aquele homem era um vendedor de jornais. Os olhos dele eram os olhos do mundo, entendi, e nada poderia estragar a manhã em que finalmente havia virado um expoente da literatura.

– Aqui senhor. – Pensei em tanta coisa que poderia ser dita, mas nenhuma delas alcançou a minha voz e toda as consequências que viriam se tornaram antecipadamente desgastantes. As explicações que não explicam, os pedidos de desculpas que não cobrem as feridas, as justificativas que não justificam.

– Pode ficar com o troco. – Agora eu estava R$0,25 mais rico. Até me senti ingrato em não agradecê-lo.

Continuei caminhando até a banca, como disse, no largo havia várias opções. Comprei um número suficiente de jornais e ainda deixei um troco para poder comprar um bolo. A moça da banca me perguntou por que tantos jornais e expliquei a ela que havia uma matéria sobre mim. Ela deu um sorriso largo e sugeriu que minha mãe deveria estar orgulhosa. E realmente estava, não só ela, meu pai, minha avó, meu padrinho, meu amorzinho, minhas duas tias de consideração, meus três amigos mais próximos e, talvez, o homem que tenha acabado de comprar o jornal na minha mão, mas ele não estava orgulhoso do meu feito, e sim da tamanha ignorância que nunca vai fazer enxergar um alguém como eu estampando algo que não o faça produzir a frase “eu já sabia”.

Voltei pra casa, a dona da banca me ofereceu um saco para colocar os jornais, preferi não correr o risco de ter que vender um deles de novo e o aceitei. Passei na casa do bolo, peguei um de chocolate com coco. Já estava imaginando a festa que meus pais iriam fazer quando estivessem me vendo nas páginas. Quando eu lancei o livro em 2013, achei que não sabia o que estava fazendo, agora sei, eu estava tentando ser uma voz que iria aparecer no jornal longe da página policial. Consegui.

Texto de @AndersonShon

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